terça-feira, março 29, 2011

O menino do olho torto

Na cidade dos olhos certos havia um menino de olho torto. Ele tinha o olho torto e todo mundo olhava torto para ele, assim, na maneira de dizer. Ninguém tinha coragem de olhar certo para ele porque não entendiam nunca o que ele estava olhando. A cabeça dele para frente e o olho torto para um lado. Às vezes para o outro. Às vezes para cima. Às vezes para baixo. Nunca para frente seguindo a orientação da cabeça.

Uma menininha que veio da cidade das mãos cheias com os pais, curiosa e corajosa, decidiu ir lá perto olhar certo para o menino de olho torto. Os pais tinham se mudado com a menininha porque achavam que ela sofria por ter as mãos vazias em uma cidade de mãos cheias. A menininha tinha as mãos vazias e foi lá, escondido dos pais, é claro. Ela olhou bem certo para o menino e viu dentro do olho dele uma vida inteira. Uma vida com parques e professores e pedais e olhos e formigas. Uma vida inteira dentro do olho torto foi o que a menininha viu. E com as mãos vazias ela tocou o olho torto do menino. Porque com as mãos vazias ela podia tocar tudo o que ela quisesse. E oferecer o que bem entendesse. E ela tocou o olho torto do menino e pôde sentir tudo o que ele via.

O menino ficou feliz porque pela primeira vez alguém olhava certo para ele. Ficou tão feliz que colocou seu olho torto nas mãos da menininha. E ela sentiu tão intensamente toda aquela vida que tinha dentro do olho. Toda aquela areia, aquelas asas, aquelas casas, aqueles montes, aquelas gentes. Ela não entendia como aquele olho torto podia ver uma vida tão inteira. Mas ela entendia o que precisava, que era o tamanho da vida em todos os seus sentidos. E de repente, ela ficou toda envergonhada. Primeiro, porque tendo os olhos certos nunca tinha visto uma vida inteira; segundo, porque estava segurando o olho torto do menino. E o devolveu a ele.

A menininha voltou correndo, com as mãos vazias como sempre, mas com o coração cheio cheio, para contar aos pais sobre a sua experiência, dizendo que de agora em diante ela queria ter o olho torto. Seus pais concordaram que ela só podia estar doente, coitadinha, e levaram-na para ser examinada por um doutor na cidade das cabeças boas.

segunda-feira, março 21, 2011

uma flor

uma flor
é carinho em pétalas

dar uma flor
é tocar alma com dedos
de seda
e um perfume

receber uma flor
faz ascender
ao significado de ser

por um instante

uma flor